26.7.15

A VOZ DA SARA...

... trouxe ontem de volta o Jade de Amar um Cão no Palácio dos Coruchéus, em Lisboa. Uma voz concentrada de leitora juvenil – a Sara Maia – que interiorizou perfeitamente o texto desta «história» de Maria Gabriela Llansol que se pode considerar um microcosmo paradigmático da sua escrita, do seu universo e pensamento e da sua singular capacidade de pôr em consonância tensional todas as esferas do Vivo, a vida e a morte e as suas permanentes metamorfoses.



Num ambiente quase íntimo, de convivência entre adultos e crianças e cães (estavam quatro ou cinco presentes), a leitura fluía num diálogo com o texto, no ritmo e no tom congeniais com o fulgor, as ideias e a humanidade de uma relação ímpar e íntegra com o cão que nasce, sem ainda ter encarnado, no Jardim da Estrela, nasce para o texto sobre um medronheiro na Arrábida e parte para a sua última viagem em Colares, em 20 de Janeiro de 1989.


Mostrámos as belas colagens do Augusto (vinte «desenhos a lápis com fala», como lhes chamou a Maria Gabriela) feitas em 2002 a partir de Amar um Cão, e reeditámos o caderno de 2013 com o texto de Hélia Correia, escrito para os mais pequenos em sobreimpressão com o de Llansol. Viajámos e pensámos com a Sara, à imagem do Leão Jade na escrita de Llansol:
«O cão Jade é ao mesmo tempo um corredor e um meditativo. Quando corre, seu corpo veloz espelha sua meditação. Quando repousa, corre sobre suas patas dobradas...»

Jade, com Augusto e Maria Gabriela em Lisboa

A nossa gratidão, para além da Sara, vai para a Helena Tavares e o André Maranha, que organizaram e montaram com dedicação o serão de ontem.

21.7.15

AMAR UM CÃO PARA OUVIR E VER

No próximo sábado, dia 25 de Julho, pelas 21h30, o emblemático texto de Maria Gabriela Llansol Amar um Cão será lido na Galeria Quadrum, em Lisboa, por Sara Maia, uma leitora de quinze anos, num ambiente exterior do Palácio dos Coruchéus, adequadamente iluminado e afim da atmosfera do texto. Haverá também uma exposição das 20 colagens originais de Augusto Joaquim feitas a partir desta narrativa de Llansol, e que foram incluídas na edição da Assírio & Alvim intitulada Desenhos a Lápis com Fala - Amar um Cão. A expressão vem do livro de Llansol Amigo e Amiga, e relembramos o contexto desse livro em que ela surge:
«... lembrei-me de Nómada, presente-ausente – a ler e a redesenhar Amar um Cão
Ao seguir com o olhar a colecção de desenhos a lápis com fala onde esboçou a pergunta sobre o nosso cão que nos faltou em '89,
"por onde anda o Jade?"
eu questiono, fazendo agora minha a sua pungente lucidez,
"por onde anda o Nómada?"
De facto, não sei por onde andam, nem o Jade, nem o Nómada. Mas sei que Jade é, subtraído ao tempo, o piso de seu dono.»


Esperamos por todos os amigos do Espaço Llansol na Galeria Quadrum/Palácio dos Coruchéus, em Alvalade (ver planta de localização). A entrada é livre, e todos os cães são bem-vindos.


6.7.15

«O ENIGMA DO MUNDO»
A casa de Llansol em imagens

Fotografar uma casa, em particular uma casa de escritor(a) é entrar num mundo em si inapreensível. Os objectos da fotografia, lembra Barthes, são sempre «parciais», não há outros nesta arte que opera cortes no real. Por isso, o resultado será sempre – e já é muito – a reconstituição fragmentária de recantos, objectos, lugares e materiais de escrita, fontes de leitura, e também, se o fotógrafo para isso tiver a necessária sensibilidade, a recuperação de atmosferas particulares que são uma espécie de líquido amniótico onde se configura uma existência e de onde nasce a escrita.
Numa escritora como Maria Gabriela Llansol, isto era decisivo. E Pedro Teixeira Neves, fotógrafo, mas também jornalista e escritor, soube fazer jus a essa exigência no belo livro (de artista) que compôs com fotografias feitas recentemente na casa da escritora que hoje é o Espaço Llansol. Chamou-lhe O Enigma do Mundo, e fez acompanhar a selecção de fotografias a preto-branco de um pequeno texto que fecha o livro:





O resultado da deambulação do seu olhar muito atento aos mais diversos pormenores é a imagem múltipla de uma «casa de escrever» como a própria «escrevente» a vê num caderno de 1995, onde lemos:

Gostaria de ter uma casa imensa________ para expor meus pensamentos e objectos______ o meu olhar sobre a realidade que se transforma: este é o meu quarto de Sintra, o meu quarto velado à luz da vela________ e hoje arrumei melhor a estante dos livros________ e parti dela.
Olho e volto a olhar, consigo um olhar novo – o sentido dos livros vivos desperta em mim a partir da estante. Trabalhasse eu mil horas por dia, e reteria sempre mais trabalho _______ deve ser de haver múltiplos seres em mim com o desejo de continuar-me e acabar-me [...]
________ abri a porta da casa de escrever, e entrei nela; estava vazia; abri a porta da casa de escrever que estava dentro da casa de escrever – estava vazia; passeei-me à entrada da casa de escrever que havia nessa segunda casa, e senti que o meu objectivo era ficar – ficar muito para além da terra cujas ondas de beleza ressoam ainda na praia aos meus ouvidos. As casas estavam gastas por nascerem sempre umas dentro das outras como crianças surdas. [...]
A casa grande, enorme, que conteria os perdidos – os objectos, cenas da minha vida –, os encontrados e as transformações, sendo uma casa real, seria estática – um Museu. Sendo um pensamento, encontraremos um lugar para viver. A única condição é o pensamento poder «audaciar-se», exprimir-se em obra que fique em toda a parte _______ (Caderno 1.43, 1995)



Nas «casas de escrever», nas várias casas de escrita por onde Llansol passou e em que continuamente vai renascendo – desde a casa paterna na Rua Domingos Sequeira, em Lisboa, à da avó em Alpedrinha, do apartamento urbano de Lovaina ao quarto minúsculo da granja de Herbais e às casas de Colares e Sintra, que tantos livros viram nascer e crescer –, as palavras escritas nos Cadernos (quase sempre a esferográfica, de diversas cores) animam-se para dar corpo aos «múltiplos seres em mim». São, desde os primeiros escritos de infância e juventude, casas dentro de casas dentro de casas, como revela um dos fragmentos citados; e afinal é sempre a mesma casa arquetípica, arcano central desta Obra, que contém a escrita e nela está contida. Casas repletas de objectos, mas em si mesmas vazias, como o «mundo desabitado», «espécie de deserto à minha volta», à espera de serem preenchidas, mobiladas com formas e sentidos vindos – na carroça que atravessa «as ruas do meu interior» – de outros lugares, cidades da alma «onde a imagem estava plena».
Nesta casa feita de muitas casas sempre cheias de sinais, e com múltiplas janelas abertas sobre o universo, tudo gira em permanente vibração e devir. Escrever – escreler com as muitas Figuras que antes dela escreveram e foram acolhidas na casa do texto, e com os legentes que se alimentam da sua escrita e a prolongam – é aí um acto de necessidade, uma espécie de «segunda natureza», como se lê num dos Cadernos. Aí, «o balanço deste meu, vosso, mundo não tem fim; a necessidade de abrir-lhe as portas é real________».