29.6.14

UM QUARTO QUE SEJA NOSSO...
Virgina Woolf na «Letra E»

Com a ausência da escritora Ana Luísa Amaral, que por um impedimento de última hora não pôde deslocar-se do Porto a Sintra, tivémos ontem a última sessão da «Letra E» antes das férias de Verão. Ocasião de balanço, feito a abrir o encontro por João Barrento, que lembrou o que foi a programação deste espaço em dois anos e meio de existência, com vinte e nove sessões (e dezasseis «Cadernos da Letra E» produzidos por nós) em torno da ligação de Llansol a algumas das suas figuras históricas, ou com nomes da literatura, das artes e do pensamento contemporâneos, cruzando-se e alternando com uma outra linha de programação que trouxe a Sintra muitos intervenientes que reflectiram sobre problemas específicos da escrita desta autora, do seu universo ou do espólio que deixou, mas igualmente de questões prementes do mundo de hoje, que foi também o seu. Por aqui passaram figuras como Hölderlin ou Ana de Peñalosa (e as beguinas), Pessoa e Bach, Emily Dickinson e Virginia Woolf; escritores como Gonçalo M. Tavares, Hélia Correia ou António Vieira (e a austríaca Ilse Pollack, com o seu «Almanaque-Llansol»); pensadores como Augusto Joaquim, Blanchot ou Eduardo Prado Coelho; críticos e professores como António Guerreiro, Tomás Maia, Sousa Dias, Paulo Sarmento, Helena Vieira e Paula Morão; criadores como a fotógrafa Teresa Huertas, os pintores João Queiroz e Pedro Proença, o compositor João Madureira. Aqui se discutiu e leu, se fizeram exposições (de fotografia, pintura, colagem, desenho; e de imensos materiais do espólio de Llansol, desde a sua juvenilia), se mostraram filmes, se ouviu música, atravessando assim lugares e épocas, temas e problemas, todos eles com uma ligação explícita ao universo-Llansol.

A ausência de Ana Luísa Amaral foi colmatada com a reflexão (e conversa alargada no final a muitos dos presentes) de Hélia Correia, Maria Etelvina Santos e João Barrento em torno da ligação, não isenta de oscilações, mas intensa em pelo menos duas épocas da sua vida de escrita, de Llansol com Virginia Woolf. A escrita nos cadernos (e entretanto também já nos Livros de Horas II e III) permite constatar que a ocupação de M. G. Llansol com a escritora inglesa se concentra em dois períodos distintos e distantes no tempo: os anos finais da década de setenta (na Bélgica) e os anos noventa, entre Colares e Sintra (é nestes anos que Llansol – sob o pseudónimo de Ana Fontes – traduz e publica, na Colares Editora, as Cartas Íntimas a Vita Sackville-West). 



Tudo parece ter começado com a releitura de Mrs. Dalloway em 1978 (o exemplar que temos na biblioteca traz uma assinatura que remete já para a juventude de Llansol, ainda em Portugal):

... Leio Mrs. Dalloway – uma parte da grande sensação que eu conheço agora – num livro. Tornei-me um instrumento muito percutente,  à  entrada do mundo,  quer  ele seja a  cidade,  a espera, a secretária, a partida ou o regresso. Poeira do chão levanta-se com vibrações, eu troco o meu corpo por um encontro global com o prazer que, neste instante de meses, é a minha fonte durável de conhecimento.
(Avulso FAms0103r, 1978)

2 de Janeiro de 1978
Agora, os Diários Íntimos são os meus Contos de Infância. Biografias que consigo vão trazendo e definindo os acontecimentos e os ambientes, enfim, as épocas históricas, mas de forma próxima e através de homens; como no Natal passado descobri Rilke, agora descubro Virginia Woolf. Nada li da sua obra, por um acaso tomei primeiramente contacto com o seu Diário1 e a sua vida. Mulher agreste, obcecada pelo seu trabalho quotidiano, de que não conheço o alcance, a não ser pela Enciclopédia. (...)  Vou encomendar o Diário de Katherine Mansfield. Um pouco fora de moda, a forma de sentir destas mulheres? Eu encontro-me, no entanto, com elas, um século depois. Eram seres múltiplos num único ser, num mundo de convencionais durezas «machas», elas deram em sua casa com a escrita que, ao ritmo da sua coragem e medo, lhes permitiu erguer a voz.
(Livro de Horas II)


O que une e o que separa os universos de vida e de escrita destas duas mulheres? As três intervenções abordaram os mais diversos aspectos deste encontro, que começou por suscitar alguma resistência por parte de Llansol («A princípio não a amava, à sua figura de feminista e de mulher em que sobressaía demasiadamente sobretudo o intelectual. Embora a admirasse, era-me antipática...»). O que explica a «perplexidade» expressa por Hélia Correia, no início da sua intervenção, em relação a esta atracção, que acabaria por ir dar a uma convivência mais intensa, e por dar frutos concretos e deixar rasto na escrita de Llansol. De facto, Virginia Woolf (como outros grandes inovadores da ficção do seu tempo) acabará por ser confessadamente, objecto de fascínio – e não de mera sedução – para M. G. Llansol, como se pode ler na grande entrevista de 1995:

... É a esta destrinça que se vão dedicar Kafka e Musil (e, um nível diferente, que tem o seu paralelo em E. Dickinson, Virginia Woolf) (...)
A sedução é uma relação de captação, dispositivo gestual e cénico de submissão de todas as vozes a uma única voz (...) O fascínio, pelo contrário, é um acontecer imponderável sem destinatário preciso, despido de qualquer intenção de atrair: pura afirmação a criar movimento. E, sob este aspecto, Musil (e, de outro modo, V. Woolf) foi bastante longe...
(«O Espaço Edénico»)

Vivendo e escrevendo em mundos muito diferentes (Woolf imersa na vida social – ainda que à margem das convenções, no microcosmo de Bloomsbury –, Llansol no isolamento e na fobia do «gregário»: «Herbais foi de silêncio»), criando figuras e mundos que se tocam em algumas arestas, mas não se identificam, as duas acabam por se encontrar em múltiplos aspectos, justificando plenamente a sua relação em termos de «afinidades electivas selectivas» que a conversa de ontem documentou amplamente, apoiada na leitura dos fragmentos de Llansol que figuram no «Caderno da Letra E» feito para esta ocasião. Eis alguns desses pontos de encontro, que foram surgindo, como matéria que proporcionou uma viva conversa final, nos comentários dos três intervenientes, cruzados e complementares:
- a preferência por determinados géneros, para além da ficção (diários e biografias):
         15 de Agosto de 1985
Mais do que Kafka ou Virginia Woolf, interessam-me agora os seus diários – o duplo da obra em causa. Será o Diário aquilo, de pouco valor, que roubaram à Obra? (...) São um só, disse: – São diferentes aspectos de uma unidade incorruptível.  
(Caderno 1.18, avulso 07)
 
- as questões de gender e sexo (de «mulheres fora de moda» – estranha afirmação, quando nos anos setenta V. Woolf era tão actual!), e os caminhos da libertação da sua «fixidez»:
... O que será quem estiver liberto da fixidez do seu sexo? O que poderá vir a ser? O que estará sendo? (...) Leio V. Woolf como um campo florido de possibilidades para sempre, e a mutação masculino/feminino, presente em Orlando, como uma grande liberdade de espírito na travessia do conhecimento / da consciência própria.
Orlando não é uma guerra concreta, é uma mente exigindo uma forma corpórea de vida...
(Caderno 2.46, Março de 1992)

- o espectro amplo da compreensão (e da prática) da experiência sexual, até ao limite da rejeição do sexo (no ambiente «marginal» do grupo de Bloomsbury, mas que Hélia Correia distinguiu da sexualidade mais radicada no corpo que é a que transparece na escrita de Llansol):
... Vendo V. Woolf, o seu destino, compreendo como é necessário viver e escrever, e não não viver sozinha com a escrita. Viver sozinha com a escrita seria uma aventura temerária. Não desejarei preparar nenhuma espécie de decadência (...), pois que estou multiplamente viva.
(Livro de Horas III)

- «seres múltiplos num único ser», um ponto de vista muito llansoliano, e já «figural»; aspecto particularmente evidente em Orlando de V. Woolf, e que em Llansol se manifesta num entendimento do sexo como energia do ser que se propaga ao mundo (o «sexo da paisagem») e ao próprio acto de legência (o «sexo de ler»); e em V. Woolf na ideia de que nem dois sexos bastam, e muito menos apenas um, e de que é preciso descortinar «outros sexos, olhando através das árvores e outros céus...»:
... e eu compreendo (...) que ela viveu no tempo concreto do seu próprio corpo, da sua própria época, mas que vários aspectos de outros seres, e de outras dimensões – o tempo e o espaço – vieram encontrar-se, unir-se e fragmentar-se nela – de si para o outro – e no trabalho que exercia sobre os seus próprios livros.
Fragmentação, dispersão, um caminho possível para a unidade...
(Sobre Orlando, Caderno 2.46, Março de 1992)
 
- o trabalho manual como parte integrante de um quotidiano que se transformará em escrita:
Acontece-me uma estranha solidão ou companhia, aquela que escreve desprende-se de mim e vive como uma sombra comigo, numa existência plenamente autónoma. Quando faço o pão ela está lá, quando ando na rua está comigo, em toda a parte vem atrás de mim como se fosse eu na minha imaginação criadora e de poder.
(Livro de Horas II)
 
- a escrita como modo de afirmação, ou como o próprio cerne do Ser constituído pela intensidade do instante (moments of being em V. Woolf):
Sentir-se alguém assim como V. Woolf – é não ser ninguém, não possuir uma marca concreta de existência. Por essa razão, Marguerite Yourcenar dizia que os seus livros eram biografias do ser...
(Caderno 2.46, Março de 1992)
 
- a inserção da matéria biográfica na «ficção», a ponto de se tornarem indistintas: tudo é autobiográfico, mas na escrita não há autobiografia, antes uma «signografia do Há», registo de sinais de uma existência sustentada pela escrita, e algumas relações que dela emergem. É o grande paradoxo do autobiográfico em M. G. Llansol (e Virginia Woolf), presente também numa frase de Um Quarto…: «Quanto mais verídicos forem os factos, melhor será a ficção».

- o poder das sensações (cf. começo de The Waves), em especial do olhar, e do ponto de vista descritivo (cf. já Mrs Dalloway, ou Rumo ao Farol), que leva a que o próprio ensaio conviva com o quotidiano e as suas descrições (em Um Quarto que Seja Seu), animado pelo acaso e pelas afecções da alma, com uma sensibilidade ampla e liberta que permita iluminar até as mais insignificantes coisas do mundo;
- uma escrita de atmosferas (V. Woolf) ou da predominância do espaço sobre o tempo (como de si diz Llansol); espaços e atmosferas com nomes próprios, que em si mesmos sintetizam (sem simbolizarem, a não ser talvez como lugares de regresso permanente) uma existência de escrita: Elvedon na V. Woolf das Ondas, Herbais para M. G. Llansol a partir dos anos oitenta (mesmo em Sintra, Herbais está sempre a regressar);

- a anulação dos tempos no tempo da escrita; e o tratamento livre das figuras, sem tempo, nos espaços que lhes são próprios, sem biografia nem sexo/género – como o próprio Texto? (cf. Orlando). Em Orlando estamos perante o livro mais «figural» de V. Woolf (como em The Waves teremos o mais metaliterário e «poético», em paralelo, por ex., com O Jogo da Liberdade da Alma), livre no tratamento da personagem-figura, oscilante e metamórfico (há paralelos com a Lillias Fraser da Hélia, na sua deambulação por espaços vários e na sua metamorfose, entre Culloden e Lisboa, os terramotos da História e as suas próprias variações interiores?);
- e houve ainda tempo para assinalar paralelos quanto aos caminhos da escrita das duas: o «caminhar por um sítio interdito» (Um Quarto…) e a busca de uma «verdade». Na V. Woolf de Um Quarto…, no British Museum; em Llansol, em si própria enquanto ser de escrita, e não social; nas duas: fora da impostura, procurando algo como «a truth of one's own», num processo de individuação contínuo através da escrita.

De tempo e espaço, e do seu tratamento muito sui generis se falou muito no final, a partir de várias questões colocadas pelos presentes. E também da casa e do seu lugar nestas autoras, por comparação e contraste com a grande tradição do romance realista. Aí todos entenderam melhor como os espaços do texto (que Llansol transforma em «lugares») são essenciais, para lá dos tempos, para atribuir marcas próprias à experiência dos dias que neles se desenrola, e como as datas, a que ambas as autoras atribuem grande importância, precisam de ver o seu carácter referencial de calendário preenchido pela matéria existencial específica que lhes dá rosto próprio.