28.4.14

«ESCREVO SOBRE O GRANDE GUARDANAPO BRANCO...»
Os cafés de Llansol


Ainda com ecos e imagens dos 40 anos do 25 de Abril presentes, a sessão de sábado da Letra E levou-nos até aos cafés de Maria Gabriela Llansol, lugares onde, entre Lovaina, Lisboa e Sintra, ela foi escrevendo com alguma regularidade. Com a sala completamente transformada, a condizer com o tema, João Barrento situou a escrita de café de Llansol no contexto dessa grande tradição europeia desde o século XVIII, assinalando o que mais distingue M. G. Llansol dos tradicionais literatos de café. Alguns momentos dessa intervenção:  

[...] Sendo frequente, a escrita de café em Llansol não é propriamente um hábito regular, muito menos um ritual: é antes o prolongamento natural da escrita dos dias e do apelo dos cadernos que quase sempre a acompanhavam – e quando isso não acontecia, também o jornal, o guardanapo de papel ou um envelope podiam servir de suporte de escrita imediata.
A escrita de café é, no caso de Llansol, muitas vezes o resultado da observação do que se passa à sua volta, logo seguida do imperativo de escrever. Coisa que não é muito diferente de escrever em casa, nem impede que nasçam também, nessa outra situação, fragmentos literários mais acabados, ou escrita sobre alguma matéria particular que, no momento, lhe ocupa o campo libidinal e mental. Mas em geral, para M. G. Llansol, o café é um espaço neutro, sem matéria figural visível ao primeiro olhar. 
[...] O que não encontramos nos cafés de Llansol é a atmosfera efervescente, animada, snob, antiburguesa dos cafés literários que referi antes, os dos movimentos de vanguarda por toda a Europa, entre 1900 e os anos trinta. Nem encontramos aí também o espírito de grupo, mais ou menos sectário, mais ou menos aberto, que foi o de alguns cafés marcados por grupos geracionais ou tendências literárias, entre os anos quarenta e setenta do século passado, onde a maior parte do tempo não se escrevia, mas se conversava e discutia. Nos cafés de Llansol não sopra propriamente nenhum «espírito» de grupo, quando muito (e alguns textos dão a entender isso) um estilo de época, um Zeitgeist quase sempre perturbador para a escrevente. Os cafés de Llansol eram os de toda a gente, e neles a escritora passeante, isolada e atenta, observava e escrevia – tinha de escrever, obedecendo ao imperativo que sobre ela descia em qualquer lugar onde se encontrasse e sempre que o mundo envolvente viesse ter com ela.
Os «textos de café» de Maria Gabriela Llansol, talvez mais claramente na fase portuguesa do que na Bélgica, são textos de observação, não raramente com alguma ironia, e também de reflexão, aqui e ali na companhia de alguma figura maior do seu Texto (Spinoza no Ramisco) ou de algum livro em fase de construção. As mais das vezes, tal como os próprios cafés por onde circula, se senta acidentalmente e escreve, os textos são escrita de circunstância, produto da situação, e por isso às vezes se acomodam nas margens do jornal, em guardanapos ou mesmo, na hora do nascimento deste tipo de escrita, nas bases dos copos de cerveja dos cafés de Lovaina, num jogo amoroso com Augusto Joaquim, anunciando já, nesses suportes de escrita a quatro mãos dos anos sessenta, o nascimento do «ambo». 
[...] 
Contrariando também a grande tradição europeia e moderna da preferência de alguns escritores pelos fundos mais escuros dos seus cafés (o exemplo paradigmático pode ser o de Adalbert, o novelista, na novela de Thomas Mann Tonio Kröger), Llansol prefere muitas vezes as esplanadas (vejam-se alguns dos textos de Lisboa e Sintra), lugares de luz e de verde, para nelas dialogar, por escrito, com transeuntes, árvores, paisagens. O olhar e a imaginação activa têm aí o seu terreno propício para se cruzarem e gerarem a escrita do corpo e da alma que é quase sempre a de Llansol, nesse seu «horizonte bipartido do silêncio», anotando «coincidências» que sabe «serem apenas a face escondida de outros sinais no mundo», deixando convergir também nestes textos escritos muitas vezes no meio da multidão, como o escritor do conhecido conto de Poe ou em Baudelaire e Benjamin, tudo o que a imaginação e a visão acrescentam ao que o olhar vê. 
[...]
E nem a morte escapa a esse poder de observação que se casa com a imaginação, como no último texto que leremos, onde subitamente, no lago em frente do café do Jardim da Estrela, um pato sulca o abismo, a «falha súbita» que se abre na água, numa visão do fim que converge com a das origens, no voo do pato até à fonte de Neptuno, «que conheço desde a minha infância», diz a anotação em pequenas folhas de bloco avulsas.


Veja aqui uma síntese da sessão em imagens (com a Cantata do Café, de J. S. Bach)

Da selecção que fizémos da escrita de café inédita, e que agora se pode ler em mais um «Caderno da Letra E», extraímos alguns dos textos que foram lidos no sábado por Maria Etelvina Santos e Helena Alves.

O Jardim da Parada

13 de Março 1985
[...]
Os cafés prefiguram este lugar, com suas portas abertas e mesas escolhidas; um criado circula para servir e as vozes são a moeda de troca. Quem troca não está perdido; nos cafés, trocar é uma tentativa, um símbolo de ignorância e de desejo – tal como o meu.
Tenho vários cafés à minha volta, mas o que prefiro é o do Jardim da Parada, com a entrada aberta sob as árvores. O jardim quadrado da cidade deixa uma praça quadrada quando desaparece, se desaparecesse, e o seu estímulo é humano e vegetal, uma vigília do vegetal sobre o humano, e a minha vigília que os liga. O café padece de falta de palavras úteis; mas as inúteis são um rumor que me entrega a clorofila de que eu preciso. 
[...]

O Brasseur de Lovaina
24 de Abril 1974
Não tenho dinheiro para comprar a saia de cor crua que desejava e transformo o meu desejo em escrita e espaço cénico sobre a mesa do café (o «Brasseur»); vejo-me rodeada de folhas de papel que murmuram música, mobilidade e noite, não obscura; flutuo num ritmo de Nietzsche, livros, o meu braço nu assente sobre a página, moreno e cheio, por envelhecer. Por escrever está o nosso futuro, à minha frente o Augusto atinge com o olhar o nosso encontro, vê o que é.

No Ramisco, Várzea de Colares
Anos 80

As pessoas partiram e deixaram no terraço, a substituí-las, a sombra das árvores. O falcão observou do alto esta passagem do humano para o vegetal da sombra. Interrogou-se sobre a ausência do corpo que estivera na cadeira pintada de branco, à esquerda, junto do muro. Era tão brilhante e difícil de apagar que se fixou numa forma finita__________ 


À mesa do Ramisco, lembrei-me do desaparecimento ardente da Ferrari.

A Tentadora, Campo de Ourique
28 de Setembro 1988

Evoluí longamente para além de tudo o que possamos imaginar que eu evoluí. Sinto o café/restaurante totalmente vazio à minha volta, sem contacto humano, e sem sentido. Penso na floresta, que é o pinhal onde talvez se estenda a nossa casa de madeira a implantar, e vejo, em todo o seu espaço, como todos os meus novos companheiros e amantes me levaram daqui.
E tão progressivamente, tão docemente que nem me dou conta.
[...]
Somam-se os chás e o resultado no meu corpo humano é surpreendente. Um outro globo paira, que me envolve, e não pode medir-se, ligeiro, na atmosfera e no ar. Mas o ar desta cidade está cheio de corações humanos sufocados ______ e mesmo o mais ínfimo animal é mais igual a mim.


17 de Janeiro 2000
As pombas rolam no espaço que espelha a igreja do Santo Condestável sobre as mesmas pombas. Entramos na Tentadora, e as antigas paredes, sobretudo o tecto trabalhado de outrora, dissolvem-se no chão. O que há, existe. Não tenhas medo – a arte de escrever é apenas entreabrires a gola do vestido, e deixar uma passagem deserta para todo o andar do corpo. Quem se ama, é ainda o Anjo da escrita caminhante – e só ele. Dar-me-ás, pois, para principiar esta velada caminhada, o arco da tua mão, onde vou pôr a flecha e amar o que escreveres, até que o que escreveres se arremesse sem medo, sem vacilação, e atinja o alvo.
 
Na Sapa, Sintra
9 de Maio 1996
Sobe a manhã a partir da mesa de café da Sapa, onde estou comungando com desconhecidos sobre o passeio. Será este? Será aquele? Será aquela Joshua, o princípio do desconhecido evidente no conhecido?
[..]
Na atmosfera azul, a Serra de Sintra esplende, irmana-se com as planícies do Alentejo, baixa para elas na imobilidade, sem cortar o espaço – o espaço que me surpreende.
Eu estou nua, vestida, completando os sentidos que me ocorrem e voltando a chávena com o pires sobre o guardanapo de papel – para eles. A fusão tem várias camadas, resistências, interstícios, e não é total.
 
17 de Dezembro 1997
Continua a ventar, estive na Sapa a contemplar o jardim aprofundado no solo, rodeado de uma sequência quadrada de casas que hei-de transpor para o livro O Senhor de Herbais – o espaço-livro. Nesse jardim há jarros sempre molhados e uma multiplicidade de pequenas habitações encaixando-se em portas e janelas que parecem não ter fim – quanto mais princípio. 

Mas tem o princípio do olhar – o eu do meu olhar material, a observá-la da sala antiquada da Sapa.
O que domina o tempo é a matéria; o que domina o espaço é o fio de verde. Os géneros do discurso estão ausentes – e a língua renova-se, porque chove, na sua densidade material. A língua é uma concentração abrindo-se para um alvo – alva neve.
Foi a neve – ausente aqui – que hoje disse___________ 

24 de Dezembro 1997

Perfeito dia de imperfeito Natal _________ que o lugar comum diria sempre imperfeito sobre esta Terra________
Sem horários – eu venho aqui quando os outros não vêm, e a véspera de Natal na sala é deserta e a Serra profunda noutra luz_____ sem iluminação.
É a sala do tempo. 

No Jardim da Estrela
12 de Fevereiro 2001

Passeio com L.
Numa cadeira do JARDIM DA ESTRELA

______ O que atravessou o meu olhar/espírito naquele momento foi a morte e o pato sobre o lago, ou, melhor olhando, o pato e a morte sobre o lago. O pato estava próximo, deslocava-se no seu movimento imóvel. E veio uma pomba dar um passeio na terra firme.
O pato tinha o bico recurvo amarelo e nadava entre duas folhas, na falha súbita que eu vi no lago. Era o meu pato – o meu pato fúnebre.
E dei-lhe a minha vida.

Sobrevoando (o lago), o pato afastou-se no sentido contrário – em direcção às águas que jorravam de Neptuno (o fontanário que conheço desde a minha infância).
Estava resolvido o problema. 
(Mais tarde).