20.5.12

GONÇALO M. TAVARES NA «LETRA E»:
Com a mão no pensamento


O escritor Gonçalo M. Tavares esteve ontem na Letra E, falando das suas ligações a Llansol, do modo como prolonga aqueles/aquelas que lê, assumindo activamente esses legados, prolongando-os sem se preocupar muito em os «perceber» ou interpretar. Ler/escrever é continuar outros, arriscando, nessa geografia da leitura e da escrita, a construção de um map of misreadings, como diria Harold Bloom. Em A Perna Esquerda de Paris, seguido de Roland Barthes e Robert Musil, Gonçalo M. Tavares escreveu também: «Precisamos com urgência / de uma ciência obcecada pelo falso, de / uma ciência que se desinteresse do verdadeiro / ou pelo menos do explicável...»; «Inventa pontos de fúria numa frase, / e ainda pontos tranquilos. / Imita-te, e falha. A criatividade é isto».
Uma vez mais a «Letra E» foi pequena para acolher os que vieram, e que afinal couberam bem nesta clareira de partilhas do texto de Llansol. A tarde abriu, como sempre, com a leitura de textos inéditos de Maria Gabriela Llansol, todos centrados sobre os modos como ela via, sentia e punha em andamento a escrita. Inéditos da fase da Bélgica, entre 1979 e 1981:


 A Maria Carolina Fenati conduziu a conversa, e o Gonçalo falou, falou sobre o que pode significar a «contra-assinatura» (Derrida) de um escritor frente à de outros escritores, na sequência deles; de como se é herdeiro activo, escolhendo um caminho próprio a partir dos restos de outros textos, fora do geometrismo das categorias pretensamente universais. E de como, por isso, Llansol ou Zambrano o fazem escrever, mas Aristóteles não. De como a escrita lhe nasce, ainda imprecisa, com o tactear dos dedos sobre o teclado e o movimento do corpo, e só depois desses «exercícios de aquecimento» se vai estruturando no pensamento. Também Llansol disse um dia que, para ela, escrever é ir progressivamente «metendo a mão no pensamento».


E a Carolina avançou na conversa com outras questões, com o problema da natureza mais ou menos «política» da literatura e do seu lugar como matéria de resistência e tomada de consciência num tempo europeu de desolação e aparente ausência de perspectivas como o de hoje. E o Gonçalo falou, falou muito sobre a importância da leitura e da escrita como alimento contra o ruído reinante, e de como algo de tão essencial como o silêncio e o isolamento são hoje objecto de incompreensão e quase estigmas. E de como variam e são múltipos os modos de estabelecer redes e ligações, de criar «comunidades» ou «Bairros» com o próximo e o distante, com o que é de hoje e o que foi de ontem: da impossível e inumana postura sábia da ataraxia ou apatia estóica (a «indiferença» universal que tudo nivela) às mais humanas – e llansolianas – aberturas de clareiras (a clareira é o lugar da luz e da leveza, no meio da espessura impenetrável da floresta, a da natureza ou a dos homens), lugares onde a luz das afinidades permite ir construindo e sobrepondo núcleos de afecto e de entendimento de dimensão humanamente abarcável, regidos por uma sintaxe do «e» – a ligação e a abertura infinita, fora da simetria, contra as convenções da verdade, na serena inquietude da escrita, como sugere nas Breves Notas sobre as Ligações: «fazer amizade com uma sucessão de sins e nãos», porque se sabe que «uma coisa é sempre igual, e varia muito».
E o pensamento foi correndo, no diálogo entre o escritor, a moderadora e o público, acompanhado sempre pela mão do Gonçalo, que desenhava e fazia esquemas, engendrava imagens que ia mostrando, nas muitas folhas brancas que trouxe consigo. Como Llansol faz constantemente nos seus cadernos manuscritos – o pensamento a suspender-se no desenho, o desenho a dar corpo visível ao pensamento.


(Caderno 1.43, p. 42)