27.5.12

BACH NA CASA DE LLANSOL


A tarde de ontem foi musical. «Musical e sem janelas», poderíamos dizer com Llansol, em Causa Amante. Porque, durante uma hora e meia, os que vieram para ver o filme de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet Crónica de Anna Magdalena Bach se voltaram para dentro, no escuro da sala, com as portadas fechadas, apenas com os reflexos  e o formigar a preto-branco que irradiavam do écran – e entraram numa viagem pela música de Bach que, em toda a sua diversidade e numa espécie de baixo contínuo, sustenta o filme do princípio ao fim e é a sua grande figura. E, em subimpressão, percorreram os momentos essenciais, as tensões criativas, os confrontos com os poderes e a dimensão humana e espiritual da biografia musical de Johann Sebastian Bach, dada através do olhar e da voz de Anna Magdalena.

 Johann Ernst Rentsch, Bach (ca. 1715)   | Fotogramas do filme de Straub/Huillet

O Daniel (Ribeiro Duarte) apresentou o filme  no contexto da obra de Straub/Huillet e nas suas ligações ao universo de Lisboaleipzig em Llansol. E no final a conversa foi longa, e passou pela montagem fílmica e literária, pela problemática do tempo e os modos de o tratar e subverter no filme e no texto, pelas afinidades e pelos contrastes entre o projecto de escrita de M. G. Llansol e a grande e sólida construção da obra musical do «monstro sagrado» de Leipzig.


E, como sempre, lemos textos inéditos dos cadernos de Llansol. Algumas dessas páginas estavam expostas, ampliadas, ao lado de alguns dos livros da sua biblioteca sobre os Bach e de CDs e cassettes com as peças de Bach que ouvia. Dessas páginas manuscritas deixamos aqui alguns fragmentos, para os que não puderam ouvi-las.


23 de Dezembro de 1982
Conclusão destes dias ansiosos:
Temos livro:
Lisboaleipzig

Descubro a música à medida que escrevo sobre Bach e Fernando Pessoa. Fico impregnada de sonoridade, e por não saber música começo a compreender melhor o que é um leitor. Os leitores não são todos iguais, nem têm todos a mesma potência evocativa. Mas também não sou propriamente um ouvinte de música, porque eu, com a música, escrevo. Perco-me num oceano de que não conheço os sinais, para encontrar-me no da invenção do verbo.
Hoje passei um dia raro entre Bach, a minha própria energia criativa e a doença da mãe. Tinha esperança.

22 de Junho de 1983
Acordo apaixonada pelo que me apaixona. É o solstício de Verão, Bach é o mediador do calor e da luz destes dias; com música ou sem música, eu percorro musicalmente seu corpo vasto, e finjo não encontrar Aossê, com vontade de brincar à dificuldade de escrever…

7 de Janeiro de 1983
Sinto-me inclinada a contar os humanos nesta casa, e a dar realce à sua diversidade de destino. Diz-se que na família Bach todos são músicos, mas isso é uma generalidade.
Diz-se que Fernando Pessoa é um grande poeta português, mas eu, vivendo a observá-los, não encontro o grande, mas o humano de um homem que me atrai.
Grande é toda a floresta humana e seus perigos: casa de Bach, floresta de humanos. Desdobrei-os da música da palavra que os envolvia e vi que eram duplamente seres.
Eu sou o órgão preferido de Bach, e o que lhe devo tem sua resposta em mim. (…)

28 de Junho de 1998
A música da caixa de leitura
Volto a Anna Magdalena e proclamo a beleza inefável do canto_________ e a beleza que eu sinto é certamente uma imagem do mundo para onde hei-de ir____________ e que desconheço.
Desejaria fazer uma caixa de leitura (um livro) em que, em partes, se sentisse de novo o arrepio de todos os meus livros presentes e ausentes. Seria também uma caixa de música anunciando a felicidade ausente ______ e a sua recordação futura e pretérita não condiz com a música da caixa de leitura, pois ela ocupa, no presente, todo o espaço da mesa. Afinal, era esta a minha mesa de café preferida, e eu penso oferecê-la aos que foram comensais do belo – como eu.
Se não fordes sensíveis ao belo, o que restará de nós será apenas uma poeira destruída.
Livro a escrever: A Caixa de Música da Leitura
contra o medo da morte.